Thursday 28 January 2010


Entrevia-se nela a mentira. Ela falava do tempo, das novidades políticas, e cirandava à volta do âmago da reunião, embrulhando-se em assuntos mundanos e curriqueiros. O Governo ameaçava sair da cena económica, antevendo tempos difíceis, porque se não for o Estado a prezar pelos cidadãos, quem será?, e, mais por mais, nunca se pode confiar no patronato. Os minutos iam passando e ela ia atabalhoadamente explicando os meandros da situação do Estado-Providência na Europa, e da farsa obamística. Mística, misticismos à parte, é saber como é que ele subiu ao poder, e receio que poucos misticismos e idealismos poderão suplantar as largas questões pragmáticas que justificam o financiamento da sua campanha por uma companhia petrolífera de renome. O Presidente da República atravessava tempos difíceis, e uma tempestade social dava os primeiros sintomas da doença terminal que assolava o país - só o país de alguns. Os minutos passavam, e ela continuava a parlamentar sobre o medo que a assolava, o de um país ingovernável e de crónica instabilidade social. Continuaram a descer a rua, pararam num restaurante, famoso pelo seu divinal arroz de pato. Falava-se agora de arte, a arte conhece sempre caras novas em períodos conturbados, e os centros culturais fervilhavam de novos movimentos artísticos, já para não falar da Internet, que é o centro cultural por excelência, embora ela não concordasse com a recente aliança da arte com a tecnologia. A arte deveria ser o extremo oposto do racionalismo e determinismo científico, e um bom casamento nunca daí deveria surgir, sob o risco de a descendência ser uma descaracterizada filosofia mecânica das visões do Mundo. 

Ele interrompeu o seu discurso erudito e actual, que, de resto, durava já há algumas horas, para lhe perguntar o que se passava. Embora o nervosismo da rapariga (chamemos-lhe, por exemplo, Félperc) se tivesse reduzido gradualmente durante a exposição do statu quo, regressara agora como uma rajada de vento inesperado nos ouvidos, atordoando-a e fazendo-a deixar cair a chávena de café que segurava com a mão direita. Pediu desculpa ao empregado de mesa e dispos-se a ajudá-lo na remoção dos escombros de porcelana, pelo que desistiu com a insistência do último. Ele tratava do assunto. Desta não se conseguia salvar ela. Os olhos dele penetravam-na como um comboio que entra num túnel, e depois estaca, como ele estacara dentro dela. O seu olhar parasitava dentro dela, fechando-lhe a saída e asfixiando-na e encerrando os seus sentidos, numa tempestade claustrofóbica sem escapatória. 

- Sabes... tenho andado tão ocupada! O trabalho, ainda no outro dia tive de ir fotografar um discurso no parque florestal do Ëest, o congressista deu uma palestra sobre energias renováveis e -

-Eu não quero saber do que ele falou. Que é isto que eu nunca senti?

A retina do olho de Félperc fechou-se. O rapaz (chamemos-lhe, vá lá, Suso) reparou num relance no ar fechado dela. Por razões ainda não descortinadas, ela adoptou, de repente, uma postura despreocupada.

- Dores?

-Não.

- Suso... está tudo bem.

A abertura ia-se fechado, o ar rareficando.

- Sim?

- Talvez. Há coisas que me incomodam.

- Eu não me importo de ir aos concertos que tu vais, eu passo a acompanhar-te aos desfiles de moda e às inaugurações das revistas e-

-Não. Isso não és tu.

-Verdade.

- Não se passa mesmo nada, está tudo bem. 

O medo disforme e negro acariciava-lhe a cara mas deixava-a sem saída, apertando-lhe o ventre, e cortando-lhe a circulação.

-E se fossemos para casa?

-Sim, sim. São horas de prepararmos (sim, "perpararmos" e não "preparar") o jantar e...

Ele suspirava de alívio, não a ouvia. Pensava o quão estúpido havia sido. Estava tudo bem e ele estava a criar um monstro leviathânico que no futuro até lhe poderia ser prejudicial. Seria péssimo para Félperc sentir-se constrangida pelo seu medo persecutório e a sua insegurança. Ela necessitava de algo firme e inquestionável, de algo tão sólido que não era necessário ser questionado. E ele criava assim uma presença indesejada, como uma arma guardada pronta a ser disparada, na qual os dois pensariam em utilizar, e que os mataria aos dois, um medo crescente sob o nome de desconfiança. Decidiu abandonar a sua criação.

-É o peso de querer ser livre, Suso. É inadvertido.

Violinos desafinados.

-Isso é uma despedida?

Trompetes a soprar, o fim está próximo. Félperc havia sido sincera pela primeira vez neste texto.

-Isto somos nós a terminar.

O buraco fechou-se, o ar literalmente ardeu e desintegrou-se, o tempo da vida deixou de correr, como se o contador tivesse parado e fosse o ano zero.

Uma rajada de ar fresco sacudiu-a, de tal forma que ela julgou que os seus cabelos ondularam ligeiramente. Esta rajada, ao invés das anteriores, era fresca, e ela sentiu-se elevar. O peso que enfatizava a força da gravidade ardera com o ar, e as cinzas haviam sido empurradas por este novo vento bom, espalhando-se pelo ar. Já não pesava nas suas costas.

-Aqui te deixo a minha declaração de dependência, anunciou Suso.

- Adeus, Suso. 

(Ausência de "desculpa". Não podemos condenar as necessidades intrínsecas de liberdade)

Félperc saiu para o sol da rua, virou à direita e tomou pela marginal do cais. Atrás deixava uma realidade destroçada, que havia desmoronado e levaria muito tempo a reerguer-se, mas o ressurgimento é sempre possível. O dedo, de quando em vez, entrava na água e criava um troço efémero que descrevia círculos e traços na água, como de brincadeira. Ela podia desenhar a sua vida agora. O dedo que escreve é o dela, e de mais ninguém.


Ah, foi que ela que pagou a conta.

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