Saturday 10 October 2009

To Adelaide Durmanov-Veen

Ela gostava do cinzento. Gostava do tempo nublado, da tonalidade azul-cinzento que assolava a terra e a vida quando o céu se enchia de nuvens e ela sentia-se em casa. Sentia-se acolhida e acometida pelo sentimento de cobertura que a enrolava pelas nuvens e pela melancolia de um dia assim. Gostava da chuva, gostava de não ver o Sol. O céu azul e limpo dava-lhe uma amplitude com que se sentia desconfortável, como alguém se sente desconfortável no meio de um deserto, vulnerável às ameaças do distante e sem nada nas proximidades com que se defender. As nuvens, contudo, protegiam-na, salvaguardavam-na, oh sim, ocultavam-na das invectivas violentas do Sol e revestiam-na de tristeza e almofadas, a tristeza que ela tanto gostava, que era o seu conforto. A tristeza é o seu conforto, e o seu conforto é estar triste, num banco molhado de jardim num Novembro soturno. O seu interior não era mau, era soturno e melancólico, simples e austero, como o Dórico grego que revestia as suas colunas de nada, as suas arquitraves e capitéis decorados de pedra fria e sem estatuetas e esculturas de uma hipócrita felicidade. Ela não era hipócrita, mas já havia tentado ser, para se dissolver na vã alegria dos demais, para se sentir una e homogénea com as gentes, para não ser o azeite num copo cheio de água, mas ela é diferente, ela é uma ordem grega, uma ordem grega que se diferencia das demais pela austeridade e pelo vazio, pelo nada e pela sombra, como o azeite que se deita para um copo e que primeiro se tenta conciliar num contrato diplomático com a água e depois desiste e a sua essência sobe à tona, sobe à vista que não é igual, é azeite, não é agua nem nenhum dos seus aliados. Mas fica sempre por cima. Claramente vence. 

Ela, em certa medida, era uma vencedora, mas o peso da coroa asfixiava-a, o esforço de ser feliz exauriu-a, a alegria de viver passou a ser a tristeza de viver, igualmente legítima, igualmente prazerosa e menos cansativa. Menos aturdida deu um passo em frente, excluiu-se da água, foi ao de cima e venceu, enrolada num cobertor, junto à sua janela, a observar a melancolia da rua e a desfrutar da sua tristeza acolhedora. Já não estava cansada, já não se esforçava, já não era hipócrita, já não estava confusa, e em Novembro percebeu quem era, ela era isso, ela era triste, era essa a sua inegável essência. Mas isso já havia sido há muitos anos, quando era jovem e tinha muito para descobrir. 

Dentro do vestuário colorido e de temas florais, dentro do sorriso forçado e conveniente à introdução social, nos momentos de verdade em que se liberta do geralmente bem aceite, ela torna-se diferente. Porque o público e o privado jamais se compreendem, ela aproveita a intimidade para mergulhar num refúgio que só ela conhece, cobre-se de preto e de luxúria. O peso esmagador do prazer pelo errado e a crueldade vence e sobe à tona, ela torna-se libidinosa, o pobre bom e o certo, os bons costumes e a virtude caem do seu trono como chuva, os valores que guiam a sociedade perdem o seu sentido na coisa privada e transformam-se em meros objectos de prazer, máscaras sob as quais se legitimam e seduzem o vício e o prazer de Éris, escamoteados por uma aparente verticalidade venenosa e devassa. A lascívia era como que uma piscina para a qual ela mergulhava em busca de um extra-prazer desinteressado e casual que lhe era facultado pelo pouco interesse e a resposta voluntária dos sentidos, satisfazendo-a no alto do seu trono desatento. Ela adorava as saias de tartan escocês dos colégios internos que tapavam metade das pernas das colegiais, porque sabia que debaixo da fachada virtuosa ocultavam-se vontades irreprimíveis, que como atrás de um espelho envidraçado por onde só se pode ver o outro lado apenas de uma perspectiva, deixam os visionados indefensáveis

Desceu as escadas do prédio, saiu para a rua, apanhou o autocarro. Choviam aguaceiros que chuveiravam a terra cinzenta e parda. O azul carregado ia-se sobrecarregando à medida que caminhávamos para a noite por entre ruas estreitas do bairro mouro do castelo. A saída era esta, ela carregou no stop, como se assim estancasse o autocarro e o peso da ética. Esqueceu-se deles no autocarro, bateu à porta, sem não antes descer do autocarro e caminhar em direcção a um edifício de mosaicos verdes. Receberam-na numa sala, agarraram-na e atiraram-na contra uma parede. O quarto estava vazio, apenas revestido de tinta parda. Se era branca ou cinzenta, não se sabe, o quarto estava na penumbra, tanto porque os cortinados estavam fechados como por causa do tempo, o céu encoberto também expande as fronteiras da luxúria por camuflar melhor o que o céu limpo permite ver com mais clareza. A luxúria aproveita e estica os seus tentáculos pela opacidade de uma atmosfera cinzenta, chegando mais longe, entrando na casa onde ela estava, escurecendo as paredes, deixando-a sem saída. Aprisionaram-na sem correntes e coleiras, não valia a pena porque ela assentiu à sua submissão, curvou-se perante os desejos deles, por serem também os seus, ela gostava do conforto de ser mandada. Não ter de escolher, não ter de decidir, ser guiada pelos caprichos dos outros conferia-lhe novamente um sentimento de acolhimento e conforto, tal e qual como o céu baixo e nublado que a ocultava do Sol e o cobertor que a protegia do Mundo. Estava só, porque todos estamos, e só sozinha se sentia confortável consigo mesma, porque ninguém mais se deve confiar, só em nós, porque estamos sempre connosco e nunca nos desiludimos verdadeiramente. Não há volta a dar, deixou-se governar por eles, e eles fizeram dela o que quiseram. Despiram-na, rasgaram-lhe a decência, se é que ela não a tinha deixado no autocarro que fez a viagem entre a Estrela e o Castelo, o bem e o mal, a luz e o escuro, romperam com a sua vida passada, deixando-a nua de recordações e memórias familiares e ingénuas, condenada a ser penetrada pelos tentáculos da luxúria, estava nua, a sua roupa interior espalhada pelo chão e irreversivelmente danificada, mastigada ou contemplada como se de Buddha se tratasse o linho que lhe cobria a inocência ou a devassidão, prevaricaram-na, sentiram a humidade do pecado, e uniram a esse fluído o da prevaricação que era transportado pelos emissores fálicos dos homens que a tomaram por assalto, pelos lados, por cima e por baixo, no êxtase do prazer e da lascívia que a faziam gritar quando podia, quando não tinha a boca tapada por mãos e lenços que a impediam de falar, oh, e gritos, oh, o prazer, a mudança de prevaricação, a mudança de homens, novos emissores, a sua invasão por todo o lado, estava presa, era usada, não tinha como fugir, estava nas mãos destes homens, era violentada e danificada e remetida à humilhação e ao abandono, era feita abaixo do zero, sem possibilidade de contestar nem fugir das pretensões hegemónicas dos grandes vencedores, dos soberanos, que partilhavam entre si o poder de humilhar e explorar. Ela chorava, berrava e mergulhava num aturdimento de dores, mas estava a usar do seu direito de ser feliz assim, mergulhada também na tristeza, solidão e submissão que agiam como um cobertor sobre ela, protegendo-a do mundo, conferindo-lhe calor e conforto, sensação de ser querida por alguém, libertação das amarras da hipocrisia, oh, e êxtase, as lágrimas que lhe escorriam pela cara e morriam no queixo, desaguando no chão sujo de sangue e fluídos complexos e errados, era esta a luxúria que a fazia sentir em casa.

Terminaram, deixaram-na usar a banheira, deram-lhe roupas novas, desejaram-lhe as maiores felicidades, e o homem mais baixo tomou a iniciativa, levou-a à porta e deu-lhe dinheiro para o autocarro de volta a casa.  

1 comment:

  1. "Ela não era hipócrita, mas já havia tentado ser, ..., para não ser o azeite num copo cheio de água, mas ela é diferente,..., como o azeite que se deita para um copo e que primeiro se tenta conciliar num contrato diplomático com a água e depois desiste e a sua essência sobe à tona, sobe à vista que não é igual, é azeite, não é agua nem nenhum dos seus aliados. Mas fica sempre por cima. Claramente vence."

    Há pessoas diferentes...que são infelizes toda a vida tentando ser água.

    Não são melhores, nem piores, são diferentes...

    Beijokas

    ReplyDelete