Wednesday 16 January 2008

Ela ouviu um barulho. Primeiro, decidiu se havia de sair da cama, ou não. Estava frio fora do cobertor e do lençol e da colcha e do outro cobertor. Lá fora cheirava a homens, cheirava a corpos putrefactos que repousavam espalhados pelo quarto.
Depois de tanto pensar, decidiu ficar quieta no seu leito. Mas preferiu fechar os olhos, pois, caso o espectro a fosse incomodar, ela não o via. Sentir-lo-ia, e se tal acontecesse, enrolar-se-ia como um bicho-da-seda, daqueles que caçamos quando somos crianças. E esperaria que, tal como as crianças os esmagam, deixando um fio de seiva a correr no chão e debaixo da sola do sapato, o espectro a esquartejasse, deixando um fio de sangue a correr para dentro das fibras do lençol, para o chão, a pingar da borda da cama.
O seu corpo negro e dilacerado acusava algumas visitas nocturnas do espectro, que vinham como uma benção. Enquanto o espectro lá estava, ela era toda dele. Ela entregava-se a ele, de corpo e alma. O espectro era o cavaleiro e ela o cavalo, ele era o hábil artesão e ela a marioneta de trapos. E ele deixava-a numa lástima, sob a ameaça de voltar "um dia destes". E ela contava os dias, ansiosa que ele chegasse.
Cada vez que o espectro a visitava, trazia-lhe um corpo. Mas hoje, era diferente. Já não havia mais espaço, o cheio a podre era demasiado, ela não conseguia pôr o pé fora da cama sem pisar uma barriga ou uma perna. Verdade seja dita que, se o fizesse, a esponjosidade da carne decomposta faria-lhe lembrar os insufláveis em que brincava quando era criança, e ela sentir-se-ia feliz. Mas... hoje ela não queria a vinda do espectro. Estava farta das suas brincadeiras sádicas. Ela e o espectro já tinham exprimentado de tudo o que a mente humana proporciona inventar, e ela tinha fome. No tabuleiro ainda havia ovos, dos quais vagamente se lembrava do sabor. De facto, o cheiro é muito importante na degustação de um alimento; a canela, por exemplo, não tem sabor. Tem apenas cheiro, e é o cheiro da canela que rápidamente associamos ao seu sabor. No fundo, estamos a comer pó. E os ovos eram iguais. Ela comia-os, e sabiam a morte. Mas no fundo ela só estava a comer ovos. E se ela detestava aquele sabor de ovo acabado de sair da frigideira, para o pequeno almoço! Assim, eram muito melhores.
Quando o espectro veio, ela foi de novo brutalmente violada. Desta vez, contra a sua vontade. Quando acabaram, o espectro tirou do bolso a chave do quarto, e fêz-la engolir a chave. Depois, partiu. Ela tentou vomitar, mas já nenhum cheiro nem sabor lhe revirariam as entranhas. Então, tentou defecar. Também não conseguiu, afinal, tinha comido há pouco tempo. Agarrou numa faca, das que o espectro costumava por lá deixar, e abriu-se. Pelos seus cálculos, a chave ainda havia de estar no estômago. Remexeu-o com a sua pequena mão, e encontrou algo rijo. Puxou-o, era uma chave, já meia corroída pelo suco gástrico.
Levantou-se num pulo, navegou pelo meio dos cadáveres, e introduziu-a na fechadura. Destrancou a velha porta novecentista, que, de resto, seria um sonho ter nas nossas casas. Num clique, o trinco entrou para dentro da concâvidade a que se destina, dentro da porta, de onde há muito tinha saido e não tinha voltado. Rodou a maçaneta.
Do outro lado viu o Mundo. E hesitou. Achou-o horrivel.

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